Tinha anoitecido há pouco tempo. O céu tinha ainda um tom azulado enquanto passeávamos pela rua da baixa. Entre sons de conversas em castelhano e a agitação natural de uma multidão que regressa a casa depois de um dia de trabalho, havia um som que destoava. Que beleza de som!
Sorrimos um para o outro, fizeste questão de olhar para mim de forma cúmplice por saberes que eram sons muito familiares ao meu ouvido e à minha voz. Eu, na minha egoísta caminhada, continuei a andar. Tu puxaste-me violentamente pela mão. Paraste e furaste aos s's na diagonal entre a multidão que deambulava desenfreadamente como se estivesse atrasada para viver o ontem. Paraste na clareira de gente que admirava a voz daquela mulher que te encantou, que te despertou a atenção. Sentada no chão, de vestes sujas, de saia comprida e camisa engelhada, cabelos compridos embrulhados e meia descalça, ali estava ela cantando, o bel-canto que entoava pela rua fora e se sobrepunha a todo o barulho de rua. Dona de uma voz melodiosa entre notas musicais agrestes, ficámos a ouvi-la. Tinha postura de artista, um ar desgrenhado mas com uma voz superiormente divinal, cantando à capela árias de grande dificuldade.
Eu fiquei ali alguns momentos desconcertada e digerir tudo o que estava a ver e a ouvir, espantada pela coragem daquela mulher de se expôr na sua arte, entre público que, na sua maioria, não a merece. Tu não ficaste indiferente, deste crédito ao teu ouvido e procuraste o som, apreciaste e encantaste-te.
No final, aplaudiste e todos os que a escutavam aplaudiram, como se aquela clareira de gente que rodeou aquela mulher estivesse a envolvê-la numa grande sala de espectáculos, cujos ingressos são caros e onde só entra gente vestida a rigor para a ocasião. Foi em sinal de reconhecimento pelo bom momento proporcionado. Ninguém pagou bilhete para assistir ao espectáculo de rua, mas tu sabes quando alguém te faz bem e não temes o reconhecimento. Olhando a senhora que aparentava pouco mais de quarenta anos e, com o franzir de lábios que sabes fazer perante as injustiças, pegaste em dinheiro e foste entregar-lho.
Não sei o que terá pensado aquela criatura sentada no chão ao ver-te a aproximares-te dela e a ser presenteada. Mas eu sei o que senti: um enorme orgulho por te conhecer e por ter ao meu lado um ser humano tão bom. Senti-me também envergonhada, muito envergonhada. Porque, muito mais que tu e muito mais rapidamente, deveria ter ido ao encontro daquela mulher para ouvi-la, eu muito mais que tu deveria aplaudi-la e presenteá-la pelo excelente trabalho e pelo bom momento que me proporcionou. Deveria dar, dar, dar. E não dei, fiquei quieta a ver-te ir e voltar de sorriso nos lábios. Ah! Que raiva que senti de mim naquele momento. Não te disse nada do que estava a sentir, valeram os minutos seguintes de caminhada a digerir o momento e a pensar nesta prova de que és uma alma grande, do quanto és nobre. Do quanto és um ser humano na sua plenitude do bem. E eu se calhar nem te mereço.
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