domingo, 14 de fevereiro de 2010

Hoje escrevo-te uma história

Era uma vez...

Uma menina que gostava de palavras, de as ouvir, de as dizer e especialmente de as escrever num jogo interminável de combinações de letras e significados. Na infância, costumava pegar nos livros e pedir à mãe ou a quem estivesse por perto para lhe ler aqueles caracteres dos livros que tanta curiosidade lhe despertavam. Aos poucos, os livros novos foram-se esgotando em casa e as leituras passaram a repetir-se. Mas nunca se cansava de ouvir as mesmas histórias. As primeiras histórias de vidas estranhas, de pessoas grandes que sentiam e diziam coisas que um dia ela queria saber verdadeiramente o que eram.
Ouvia e tornava a ouvir aquelas passagens. Já quase adivinhava a frase seguinte e, com o tempo, foi dizendo antecipadamente o parágrafo abaixo em alta voz. Até pegava sabiamente, com ar distinto e altivo no livro, desfolhava a página certa e apoderava-se da história. Eles ouviam e riam, porque ela não podia saber ler aos 4 anos. Talvez soubesse...
Passou a dominar essa arte da leitura e, melhor, de interpretar, de imaginar e de sonhar. O que as palavras provocam! Foi assim que a pequena criança foi crescendo, lendo, absorvendo a vida dos grandes pelas letras, pelas folhas de papel impressas desfolhadas com avidez. Era capaz de ler um livro num só dia. E a descoberta dos sentimentos dos adultos descritos nos livros foi acontecendo.
As palavras que lhe faltavam para verbalizar aos outros sentimentos inseguros e tão novos vindos da alma brotavam na escrita, numa dança de palavras e sentimentos entregues à razão. O palpitar do coração só acalmava com a confissão ao papel que encerrava o capítulo de mais um romance cujo desfecho era quase sempre triste.
Certo dia, ouviu falar do dia de S. Valentim, 14 de Fevereiro. O nome e as proezas do senhor para chegar a santo nada lhe diziam. Soube apenas, pela sabedoria popular, que é o padroeiro dos namorados e nesse dia era suposto celebrar o Amor.
Valentim e Amor, para ela, eram duas palavras que não eram peças do mesmo puzzle. Nada lhe dizia o nome e muito menos a data, logo a ela que um dia dissera a si própria que se visse o Amor lhe viraria as costas porque deixava sempre as pessoas órfãs de afectos. E porque era um sentimento que nos podia enviar para um pedestal ou para debaixo dos destroços de um edifício atingido fortemente por um sismo e que, pelo elevado risco que comportava, dias como este deveriam ser abolidos do calendário. Para evitar lembrar rupturas e desastres infelizes por que ela foi passando ao longo da vida. As poucas vezes que se tinha cruzado com o Amor, teve medo. Foi assustada pela falta de reciprocidade e pelas vestes de romanticida que ele vestia.
Viu várias vezes, o calendário mandar suspirar de Amor o dia inteiro, num mundo em forma de coração. Era preciso naquele dia comprar peluches, flores, postais com frases românticas, coisinhas fofas para oferecer ao bem amado, diziam. À noite, havia uma placa de sentido obrigatório para os restaurantes. Uma multidão de dois, cadeiras coladas no casal que ficava atrás. E também havia silêncios de quem pouco ou nada tem a dizer, mas sempre aquele olhar apaixonado que o dia impõe. E no dia seguinte, o mundo voltava à forma redonda.
Achou sempre então que não fazia sentido um dia para o Amor. Mas, há sempre um “mas” nestas coisas. Um dia, mais uma vez de coração dilacerado, vestida de negro por dentro e por fora, de alma ainda molhada das lágrimas que caíam sem pedir licença, e passados vários dias de S. Valentim na ânsia que deixassem de existir, encontrou-o. Ao Amor, claro. Vinha vestido de negro, uma cor estranha e despropositada quando é de vermelho que se veste sempre o Amor. O Amor foi altivo, ela sorriu-lhe inocentemente porque não o identificou à primeira. Só quando o provou e lhe veio o sabor doce aos lábios soube quem era. E não fugiu. Ficou ali espectante na ânsia de que desta vez fosse diferente fazer uma viagem com aquele que diziam os outros ser o mais belo sentimento do mundo.
Aquele Amor não era para ser celebrado a 14 de Fevereiro. Era tão mágico que parecia feitiço dos bons. A menina amiga das palavras passou a suspirar e a dar espaço ao silêncio. Era sem palavras que passava os dias, munia-se de sorrisos cúmplices com ela própria. A escrita confidente não lhe arrancava uma frase. Porque era tudo tão novo, tão diferente, tão melhor. E ele prometia-lhe que era para sempre.
E só voltou a escrever para dizer palavras mágicas, plenas de sentido e significado algum tempo depois. A menina passou então a dizer: “Que se celebre então o Amor todos os dias do ano”. Porque o Amor passara, para ela, a ser o mais sublime sentimento do mundo e devia festejar-se sempre, viver-se todos os dias e sentir-se em cada um dos 365 dias do ano.
O que faltava à menina era conseguir tornar isso realidade. Era isso que faltava à menina e ao seu Amor. Ela queria-o sempre perto dela, para o poder viver e sentir. Tornar a sensação de plenitude e completude eternas como quando o abraçava e os braços e corpos se entrelaçavam numa união sem precendente. Como quando as noites eram assaltadas de insónias porque, embora ele estivesse ao seu lado, já estava há demasiado tempo sem lhe sentir o calor da respiração e precisava de maior proximidade ainda.
E as palavras escritas voltaram a fluir e eram de Amor, saídas da alma borbulhante de alegria por se sentir tão bem. Reconhecera que mudara de ideias em relação ao Amor, que estar no pedestal pode ser um risco que vale a pena correr, mas quanto ao São Valentim, com todo o respeito, ela preferia que o abolissem na mesma do calendário.
Se mudou de ideias mais tarde, não se sabe. Sabe-se apenas que a menina das palavras e dos livros quis ter para sempre aquela relação com o Amor. Nunca quis conhecê-lo melhor, porque acha que não se deve conhecer ninguém em profundidade. Deixou-se simplesmente embalar na sua melodia enebriante de compasso binário-envolvente e seguiu vida fora com as palavras escritas em letra maior, de forma mais segura.

3 comentários:

Brandie disse...

Adorei o texto, escreves muito bem. Vou voltar mais vezes:)

Sentimento de Mim disse...

Obrigada. És muito bem-vinda. :)

Ritinha disse...

Partilho o mesmo sentimento que a Brandie! :)